Entrevista: Fábio Daflon

Lívia Corbellari
8 min readSep 2, 2019

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Carioca e médico pediatra, Fabio Daflon se acostumou a vida na capital capixaba e hoje se dedica aos estudos literários e à escrita. Autor de diversos livros e atual membro da Academia de Letras de Vila Velha, Daflon fala um pouco sobre o processo criativos dos seus dois livros mais recentes: “Sovacos” (2017) e “Mar Raso” (2018).

Como surgiu a ideia para “Sovacos” (Cousa — 2017)? Por que uma parte do corpo muitas vezes preterida é a protagonista?

O livro “Sovacos: poesia sob os braços” foi escrito dentro de um projeto mais amplo de oito livros temáticos sobre os gigantes da alma cada um com um título. Todos os oito reunidos em um único livro de poemas sob o título “Roda Gigante”. O livro “Roda Gigante” já está quase pronto. Os gigantes da alma são uma cosmologia pessoal criada por mim para não me balizar apenas na tradição judaico-cristã e ao racionalismo grego. Antes de mim, o médico cubano Myra Y Lopes escreveu um livro sob o título “Os quatro gigantes da alma”, Myra Y Lopes foi médico psiquiatra do Exército Republicano durante a Guerra Civil Espanhola. Com a derrota dos republicanos veio para o Rio de Janeiro onde se radicou. Os quatro gigantes da alma, segundo Myra Y Lopes são o amor, o dever, o medo e a ira; acrescentei mais quatro gigantes: o humor, o pensamento, a dor e o desejo, e escrevi um livro de poemas para cada um desses temas gigantescos, reunidos como já disse dentro de um projeto maior de um livro único sob o título Roda gigante. O livro sobre o gigante humor se chama “Sovacos: poesia sob os braços”, todos os outros sete gigantes já tem nomes também, por exemplo: o livro sobre a ira se chama “O sal do destempero”, o livro sobre o dever se chama “O rio temperado”, mas não vou citar todos os subtítulos dos livros contidos no livro “Roda gigante” para não me alongar demais agora.

Quanto ao porquê de uma parte de o corpo muitas vezes preterida ser a protagonista do livro diria que por ser “preterida” é que foi escolhida. Inicialmente pensei nas cócegas como motivação do riso, essa foi a primeira abertura da ideia do sovaco. Realizei, então, um estudo da Gestalt da axila feminina, vi que existem muitos poemas de diversos poetas dispersos pelo mundo, sem um livro que se aprofundasse totalmente na axila. Walt Whitman escreveu poesia sobre o sovaco, Vinícius de Moraes também, entre outros. Por outro lado, no sovaco é medida a febre, há o suor frio da angústia, o bom e o mau cheiro, a depilação e a não depilação até como questão feminista.

Sovaco é concha, dez entre dez estrelas de cinema abrem o braço sensualmente para que a axila seja exibida.

Há também uma questão política e estética. Em um mundo de projeção de massas corporais além dos limites do corpo, como as da aplicação de próteses de silicone nos seios ou no bumbum, o sovaco se contrapõe a essas massas eventualmente exageradas e desnecessárias, ou aplicadas de forma antiética ou ilegal mesmo.

O livro é repleto de humor e ironias, como foi trabalhar esse tom para os poemas?

O humor, a auto ironia, os apelidos bem humorados, a irreverência e a capacidade rebelde do humor contra situações opressivas ou angustiosas por meio do sarcasmo, sempre esteve presente na literatura. Publiquei o livro “Sovacos: poesia sob os braços” num período muito mal-humorado da história do Brasil. Isso para mim foi delicioso.

Na medicina são estudadas as alterações do humor, há a bipolaridade, há a depressão, há a euforia, que é a histeria da alegria ou uma alegria falsa. Sou médico pediatra e a pediatria é uma especialidade bem-humorada em geral. Quando escolhi minha especialização em medicina fiquei em dúvida entre a pediatria e a psiquiatria, tinha vinte e três anos, idade em que me formei em medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade o Estado do Rio de Janeiro. Então vi que estava muito mais para paciente do que para trabalhador de saúde na área de saúde mental. Fui fazer análise. Posteriormente, me especializei também em medicina psicossomática.

Isso tudo me ajudou a escrever o livro sobre o gigante humor: “Sovacos: poesia sob os braços”. Trabalho em que me diverti bastante, enquanto campeava no país a crise política que resultou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Sofri da maneira que me coube e de acordo com os meus valores a crise política como qualquer brasileiro que ama seu país. Não me alienei de nada. Apesar do estranhamento da publicação do livro naquela hora.

Apesar da descontração do tema, você ainda se apega a formas fixas como o soneto, por quê?

Umberto Eco escreveu a frase “Mostre-me um soneto e dir-te-ei se tu és um poeta.” Eis a razão.

Como foi essa desafio de trabalhar apenas uma temática no livro?

Foi maravilhoso, me aprofundei no sovaco feminino e na beleza que a axila fêmea contém. Se sovaco fosse marquise suor seria infiltração de poesia.

O desafio de escrever o livro temático sobre o gigante da alma humor foi igual ao desafio de escrever os outros livros temáticos sobre os outros sete gigantes da alma. O livro sobre o gigante da alma dor, por exemplo, tem o título Bico de papagaio, que é o nome popular de um tipo de dor na coluna, sem esquecer a característica palradora do papagaio, isto é, a de falar e por que não da dor? Até de forma rabugenta.

Escrever poesia sempre é um desafio. Escrever poesias sobre os oito gigantes da alma foi para mim um enfrentamento, foi uma guerra, às vezes venci gigantes, às vezes fui derrotado e aceitei a derrota, houve também empates ou consensos, negociações com a dor, a ira, o medo, gigante da alma sobre o qual escrevi o livro Quimera em pânico. E foi assim que fui por essas searas e pela estrada a fora.

Apesar de a temática principal ser o sovaco, ainda percebemos uma referência ao mar, constante em suas obras, neste livro também. Qual a importância do mar para você?

Estive embarcado como médico de bordo no Contra Torpedeiro Mato Grosso da Marinha do Brasil por três anos e tenho duzentos e dezenove dias de mar naquele navio que hoje está no fundo do mar, porque depois de canibalizado, isto é, de retirados os aparatos ainda úteis ou que serviriam como peças de museu, o navio foi afundado por um míssil Sea Cat. Embarquei no Porta-aviões Minas Gerais, fiz viagem em fragatas, frequentei veleiros. Vivi a vida de homem do mar, participei de exercícios de guerra, ouvi os marinheiros com as suas doenças e problemas pessoais, ouvi os dizeres e as gírias navais. Hoje sou Capitão-de-Mar-e-Guerra da Reserva da Marinha.

O mar dá medo, o mar representa o desejo, o mar, muito antes dos gigantes da alma, sempre fez parte da vida humana. Fez parte da literatura. Joseph Conrad, por exemplo, escreveu romances totalmente ambientados em ambientes marítimos. Li toda a obra de Moacir Costa Lopes, o ficcionista do mar do Brasil.

Os meus terrores noturnos da infância tinham o mar como protagonista. Os meus naufrágios foram muito mais interiores do que concretos. Hoje só peso a mim mesmo, não sou um problema de grande monta para ninguém. A medicina me ajudou e eu ajudei a medicina, a minha vida de Oficial da Marinha me ajudou e eu ajudei a Marinha, a medicina psicossomática me ajudou e meus analistas me ajudaram e eu ajudei a medicina psicossomática promovendo a saúde mental na infância, ajudando famílias a superarem fobias escolares, disfunções familiares, então em relação a tudo que é importante para mim procurei corresponder. O mar para mim é reciprocidade. Escrevi vários livros de poesia com predominância do mar como metáfora: “Mar ignóbil”, “Mar sumidouro”, “Vagalume-Farol”, e mais recentemente “Mar raso”.

Há o mar em fúria, e a ira é um dos gigantes da alma. O mar também está presente nos livros temáticos sobre os gigantes da alma que aguardam publicação reunidos sob um título só: “Roda gigante”, como já disse.

Então, escrever sobre o mar para mim é uma questão de reciprocidade, é um agradecimento a tudo que vivi no mar como médico de bordo, é um agradecimento aos meus companheiros de farda. Aliás, o uniforme de Oficial a Marinha é o mais bonito que existe. É muito charmoso. Amo.

Falando em mar, seu mais novo livro traz no título “Mar Raso” (Scortecci Editora — 2018). Depois de um “Mar Ignóbil” e um “Mar sumidouro”, como é navegar em águas mais seguras e que “dão pé”?

É muito bom. Cheguei à praia sem ter morrido, apesar dos perigos. Naveguei em navio cheio de munições, navio que realizava exercício de tiro de canhão real. Houve alguns acidentes de percurso. Houve a subjetivação do mar a fim de que o mar ficasse em seu lugar de destaque em meus trabalhos poéticos. O Mar raso é a compreensão de mares mais profundos, é a humildade do homem diante do que é maior do que ele.

Mesmo o mar estando mais raso dessa vez, ainda há dor em sua travessia, por quê?

Porque a dor é um dos gigantes da alma. Porque quando a dor vem da alma ela pode ser sentida de forma menos dilacerante do que quando o corpo diz o que a palavra não fala.

Para finalizar, gostaria de saber se você tem vontade de escrever textos em prosas também ou sua forma de expressão é apenas por versos.

Tenho dois livros em prosa anteriores aos de poesia. O primeiro é o livro “Vento Passado: memórias do recruta 271”, sobre a participação bem-humorada de meu pai de quem sou coautor na escrita do livro no Teatro de Operações de Guerra na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. O segundo é o livro “Estrela miúda” — breve romance infinito — em que traço esboços da minha entrada na vida adulta em uma perspectiva memorialística.

Em dois mil e dezoito publiquei a segunda edição do livro “Título Provisório — movimentos estudantis na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ “— agora com o subtítulo : -– “movimentos estudantis na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ 1964 a 1985 e proêmios de 1935 a 1964” –-. O livro recebeu o Prêmio Imprensa Èlcio Xavier da União Brasileira de Escritores no ano da sua publicação.

Ultimamente, tenho resenhado livros de outros autores. Ainda este ano ocorre a publicação do livro “O limite é o cosmos — a poesia de Marly de Oliveira “— , que é um ensaio sobre a obra poética dessa poeta capixaba bem pouco estudada.

Tenho um romance escrito que pretendo publicar sob pseudônimo.

Por enquanto, tenho algumas ideias; ideias ainda cheias de falta de vontade, outras vezes sinto preguiça mesmo, escrevi muito desde dois mil e quinze, quando me aposentei também na carreira de médico do Ministério da Saúde.

No momento o meu sentimento é de saciedade em relação à escrita. Sinto vontade de ler, de viver, enfim.

Sonho escrever um romance marinheiro, um com o pano de fundo branco da medicina. Mas ainda tenho dois livros de poesia para irem para o prelo antes: o primeiro é o “Canto gordo” e o segundo, mais importante, é o “Jeca Tatuado”.

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Lívia Corbellari

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